Vila Rica por Armand Julien Pallière

Por Rafael Gontijo de Godoy

 

Num dia de 1820 o pintor, desenhista, e gravador francês Arnaud Julien Pallière sentou-se num paredão das Lages para registrar o panorama urbano do centro de Vila Rica. Estava vestido à moda européia – casaca escura, camisa branca de gola alta, calças também brancas, cartola e botas pretas. Apoiava a tela sobre as pernas. Às suas costas um assistente segurava uma sobrinha de aspecto oriental que o protegia do sol.

As Lages ficam na beira do caminho que levava e ainda leva de Ouro Preto a Mariana. Pallière se destacava em meio às pessoas que transitavam por ali naqueles dias: um homem descalço, de chapéu de palha e camisa branca que conduzia um burro; um soldado com uniforme no estilo daqueles das guerras napoleônicas montado num cavalo branco.  A poucos metros do pintor, do lado oposto da rua, escravos carregavam toras de madeira.

Essa cena não é um exercício de imaginação. Ela pode ser vista no canto inferior direito da tela de Pallière “Vila Rica”, hoje no Museu da Inconfidência. A obra é um dos primeiros e mais precisos registros do maior centro urbano do interior brasileiro no período colonial.

Membro da Academia de Belas Artes da França, Pallière chegou ao Brasil em 1817 aos 33 anos, no mesmo navio que trouxe a princesa austríaca Leopoldina de Habsburgo, cuja mão havia sido concedida ao primogênito de D. João VI. Só voltou à Europa em 1830, quando o Brasil já havia deixado de ser colônia e se transformado num império independente. Nesses 13 anos o francês, considerado o introdutor da litogravura no Brasil, trabalhou para o reino português e para o império brasileiro. Logo após sua chegada, Dom João VI o encarregou de registrar paisagens das capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. “Villa Rica” é resultado dessa missão. No reinado de D. Pedro I, chefiou a engenharia do recém criado exército brasileiro – cargo onde desenhou uniformes e condecorações, além do planejamento urbano de Niterói. Também foi nomeado pintor da Imperial Câmara.

Se Pallière tivesse vindo a Vila Rica dois anos mais tarde, os anjos que sobrevoam a capital em seu quadro estariam segurando uma placa com a inscrição “Imperial Cidade de Ouro Preto”, ou só “Ouro Preto”. Como Vila Rica ou Ouro Preto, os viajantes que passaram pela cidade no mesmo período em que o artista são unânimes em destacar a decadência da capital de Minas Gerais, que não transparece na pintura: casas velhas e abandonadas, habitadas por uma população sem perspectivas que parece atordoada esperando a volta do ouro. Só o aparato da administração pública evitava uma desolação maior.

 

Mudanças e Permanências

 

Registro visual minucioso, “Vila Rica” é uma preciosidade. Permite a análise das feições da Ouro Preto colonial e das mudanças desse cenário com o passar dos anos.À primeira vista,as permanências são mais perceptíveis.

Os grandes prédios e o traçado das ruas que caracterizam o conjunto da atual Praça Tiradentes com seus arredores praticamente não mudaram. A Casa de Câmara e Cadeia, hoje Museu da Inconfidência, as igrejas das Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco de Assis e os casarões denominados “Conjunto Alpoim” ainda se apresentam como foram vistos por Pallière. Também não sofreu alterações significativas a residência do poeta e inconfidente Cláudio Manoel da Costa. Contudo, no início do século XIX esses edifícios eram um pouco diferentes.

Olhando o quadro de perto, é possível enxergar as traves estruturais para a construção da fachada posterior da Casa de Câmara e Cadeia. Uma aquarela de Thomas Ender, contemporânea do quadro de Pallière, mostra o edifício de outro ângulo, com as costas abertas. Já as igrejas não tinham a decoração interior concluída. Nos anos 1820, Manoel da Costa Athaide planejaria uma pintura para o forro da Igreja da Ordem Terceira do Carmo nos moldes da que executara poucos anos antes em São Francisco de Assis, mas o projeto nunca saiu do papel e o forro só foi pintado na virada do século. Este último templo, por sua vez, ainda não possuía os retábulos da nave.

Revelando as pequenas mudanças, a obra de Pallière não deixa de mostrar as mais significativas.

No quadro, o prédio do Palácio dos Governadores aparece com suas características originais, projetadas pelo engenheiro português José Fernandes Pinto Alpoim. O Palácio foi construído na década de 1740, sob o comando do construtor Manuel Francisco Lisboa, pai de Aleijadinho. Nos anos de 1820 era mais fácil perceber a concepção defensiva do prédio. Alpoim, militar, projetara fortes no sul do país, cenário de disputas entre Portugal e Espanha. O palácio de Vila Rica também deveria ser um forte, mas para a proteção da Coroa portuguesa contra o inimigo interno, os súditos mineiros, sempre dispostos a sublevações contra a cobrança de impostos, como provam os acontecimentos de 1720 e 1879.

A curva que sai da Rua do Ouvidor e chega à atual Rua Bernardo de Vasconcellos também está mudada, com uma pequena capela, talvez um Passo, que pode ter sido transferido posteriormente para o outro lado da rua.

Chama atenção ainda o pelourinho em frente à igreja de São Francisco de Assis. Parece com o que existe em Mariana. A diferença é que o de lá fica defronte à Casa de Câmara e Cadeia. Em Vila Rica possuía idêntica localização. Por que, na época em que Pallière esteve na capital, havia sido transferido?

(Publicado originalmente no “Isto é Inconfidência”, Ano X, no 22, 2008)

~ por rafaelflaneur em março 19, 2010.

Uma resposta to “Vila Rica por Armand Julien Pallière”

  1. O povo merece atualizações. Um abraço e parabens pelo Blog, Rafael

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